terça-feira, 17 de agosto de 2010

Eu encarei minha imagem no espelho embaçado do banheiro. Meu cabelo pingava, formando pequenas poças no chão impecavelmente limpo. Meu rosto estava pálido, e meus olhos inchados e vermelhos. Era simplesmente impossível não notar que eu chorara.

O cordão preto em meu pescoço parecia se destacar em minha pele repentinamente clara, o pingente prateado em formato de coração na ponta brilhando ironicamente. Desviei o olhar, por algum motivo sem forças para tirar o colar dali.

Puxei o pente por meu cabelo, desembaraçando os cachos rebeldes, mais por hábito do que por realmente me importar com que aparência teria daqui pra frente. Não haveria mais ninguém para impressionar - simplesmente ninguém por quem levantar de manhã cedo e correr para a escola com um sorriso no rosto. Eu simplesmente podia sentir isso.

Fechei os olhos, deixando a dor me consumir enquanto permitia que meu corpo escorregasse para o chão.

A aula de inglês tinha se passado em um borrão irregular. Assim como todas as outras naquela manhã. Eu sabia que deveria prestar atenção nas aulas - minhas notas já estavam ruins o bastante sem ajuda - mas naquele momento, simplesmente não importava.

Meu olhar procurou instintivamente a sala dela enquanto eu andava pelo corredor. Eu esperava me deparar com a sala trancada, como em todas as tardes - era simplesmente impossível a classe dela ser liberada antes da minha. Infelizmente, o impossível costuma acontecer quando você menos o deseja.

A sala estava aberta. Não só isso. Ela estava ali, parada ao lado de duas outras garotas - eu podia reconhece-las como minhas amigas, mas no momento não era capaz nem ao menos de lembrar seus nomes -, um sorriso claramente forçado no rosto. Demorou uma fração de segundo até que seus olhos castanhos me encontrassem parada ali, apenas a observando.

"Corra." minha parte consciente gritou. Eu sabia que devia seguir o conselho; conversar com ela significaria admitir o quanto as coisas entre nós estavam erradas. No entanto, meus pés pareciam incapazes de se mexer. Becca, no entanto, estava caminhando pelo corredor, vindo em minha direção.

Observei, completamente paralisada, até que ela chegasse ao meio do caminho. Então, finalmente, eu corri. Não rápido o suficiente, notei. Na verdade, eu nem ao menos estava correndo de verdade. Apenas tinha me movido, descendo os degraus da escada em uma velocidade lenta o suficiente para que ela pudesse me alcançar em menos de dois segundos.

"Oi." cumprimentei friamente, enquanto andávamos. Essa era a única arma que eu tinha; fazer-me irritada para que ela não notasse o quanto eu estava magoada.
"Bom, pelo olhar de desprezo profundo, já deu pra entender que você me odeia." o tom dela quebrou completamente a minha raiva. Eu suspirei, desejando poder correr para o mais longe possível, apenas para não precisar responder.
"Não odeio você." seria incapaz de fazer isso mesmo que passasse a vida treinando; eu acrescentei mentalmente.

Seguimos o caminho silenciosamente, até o pátio da escola. Tudo o que eu queria era sumir dali. Podia sentir os olhos de Becca em meu rosto, e não saberia dizer por quanto tempo eu suportaria aquilo. Consultei o relógio do celular, suspirando.

"Tudo bem. Meus pais não vão me matar se eu atrasar dez minutos."

Eu detestava a ideia de ter que falar com ela. Detestava saber que ia ouvir o que não queria - detestava saber que ia ouvir a verdade. Mas aquilo não era o que eu queria? Não. Ainda assim, era o que eu precisava.

Minha mão se fechou ao redor do seu pulso - eu era incapaz de pegar sua mão e correr o risco de ela não entrelaçar os dedos aos meus - e eu a puxei menos gentilmente do que desejava até o canto familiar atrás da escada.

Puxei o celular outra vez, digitando uma mensagem de texto para os meus pais. Não podia correr o risco de eles irem até a escola verificar porque atrasei, e me encontrarem com ela. Eu podia sentir Becca lendo a mensagem por cima do meu ombro. Continuei ignorando-a enquanto guardava o celular outra vez na mochila e fixava meu olhar em um ponto qualquer do horizonte. Por um momento, nenhuma de nós falou.

"Já que você mandou uma mensagem dizendo que ia atrasar, e me arrastou até aqui, estou esperando que diga alguma coisa." ela quebrou o silêncio, hesitante.

Virei-me para olhá-la, tomando o cuidado de evitar seus olhos.

"Na verdade, estou esperando que você me diga o que tem de errado."

Ela suspirou.

"Becca, ainda sou eu. Só fale." pedi, forçando minha voz a ser um pouco mais doce e menos agressiva ou fria.
"Não sei."

Eu revirei os olhos. Estava simplesmente cheia daquilo. Por que ela não podia simplesmente falar? Fazia quase três anos que estávamos acostumadas a dividir segredos. Por que parecia tão difícil agora? Ela era uma péssima mentirosa. É claro que eu sabia que tinha algo de errado entre nós. Ela apenas precisava me dizer o que - embora eu soubesse que a pergunta não era exatamente 'o que?', e sim 'quem?'.

"Olha, se a sua ideia era não me machucar, não sei se reparou, mas não está adiantando muito!" explodi, incapaz de me conter.
"É perceptível." a expressão dela era a de alguém que cometera um crime hediondo e agora tentava encontrar uma saída.
"Então por que não diz simplesmente o que tem de errado?"
"Por que você acha que tem algo de errado?"

"Porque eu não sou burra!" eu queria gritar. Engoli as palavras, sabendo que começar uma briga não levaria a nada.

"Porque você está claramente me evitando, e se isolando, e super emo, e afastada de todo mundo também." disparei, sentindo a raiva tomar conta do meu corpo.
"Eu sei, chama-se depressão. E é por isso que minha mãe vai me levar num psicólogo." ela explicou, com o mesmo tom de voz que se usa para explicar matemática a uma criança pequena.

Eu sabia que aquilo não era verdade. Becca tinha depressão, sim; isso já era um fato conhecido. E sim, ela estava em crise. Mas crises de depressão não a faziam me evitar antes. Nunca fizeram. O problema era realmente comigo.

Eu sabia que devia ser direta - perguntar se ela me queria. Mas as palavras ficaram presas em minha garganta, e ao invés disso fiz uma pergunta semelhante, mas mais fácil de ser respondida. Meus olhos procuraram os dela, e eu os fixei ali pela primeira vez durante a nossa conversa.

"Eu quero saber se você ainda gosta de mim."

Eu desejava intensamente que ela dissesse que sim. Porque eu sabia que, se ela dissesse sim, isso apagaria qualquer evidência que eu tivesse tido do contrário.

Mas ela ainda era Becca. Ainda era a garotinha de cabelos castanhos e olhos assustados e sonhadores que eu conhecera na 7ª série, e eu ainda sabia ler sua expressão melhor que qualquer outra pessoa. Eu ainda era incapaz de acreditar no seu sim.

"Você sabe que gosto." ela desviou os olhos dos meus. Eu sorri sarcasticamente.
"Você sabe o que eu quero dizer."
"E você entendeu o que eu falei."

Suspirei outra vez. Aquilo era um jogo ridículo. Mais ridículo que qualquer uma de nossas discussões de três segundos por msn, que pareciam ter acontecido a milênios atrás. Baixei o olhar para o chão, sentindo o nó em minha garganta se apertar enquanto forçava as palavras a saírem.

"Quero dizer mais do que como amiga. Mais do que da garota sobre a qual você estava cantando hoje no intervalo." a última frase saiu quase inaudível. A garota inclinou-se para frente, tentando entender.
"Desculpa, não ouvi."
"Hoje, quando estava tocando música... Sobre amor platônico..." eu mordi o lábio, tentando impedir as lágrimas de rolarem por meu rosto com a lembrança.
"Sim?" ela me incentivou.

Eu não completei a frase. Sentia-me pior do que já me sentira desde aqueles quatro dias em que ficara presa em casa, sem poder vê-la. Na verdade, me sentia pior do que naqueles dias; ao menos naquela época eu tinha certeza de que ela me queria. Eu sabia que podia suportar qualquer coisa - desde que ela me quisesse. Com isso mudando, o chão parecia ter simplesmente desaparecido sob os meus pés.

O rosto de Becca estava a centímetros do meu. A proximidade fazia com que eu me esquecesse como respirar. Balancei a cabeça, sabendo que não deveria mais me sentir assim, e forcei-me a terminar a frase que começara.

"Você estava cantando. E estava super emo."
"Eu sempre fico emo cantando músicas..."
"Com as quais você se identifica." completei tristemente.
"Não necessariamente. Ontem eu passei o dia emo ouvindo Beatles, e não tenho nada a ver com Beatles. Fico emo cantando qualquer música." ela forçou um sorriso.
"Ótimo. Então me diga o que está errado."
"Eu não sei... Sou covarde. É isso que as pessoas covardes fazem; fogem quando tem algo de errado. Não posso dizer o que tem de errado, quando eu mesma não sei..."

Eu fechei os olhos, detestando cada uma daquelas palavras. Perguntei-me por que ela estava dizendo aquilo, quando nós duas sabíamos a verdade. De repente, eu me sentia extremamente cansada. Tudo o que queria era sair dali e deixar as lágrimas caírem por meu rosto até adormecer. Olhei para ela outra vez.

"Certo. Então só me avise quando descobrir... Seja lá que droga você vai descobrir."

Hesitei por um instante, sem saber exatamente o que fazer. Eu deveria simplesmente sair? O que se dizia a namorada depois de uma conversa daquele tipo? Olhei ao redor. Não havia ninguém por perto. Perguntei-me se eu a beijaria, em circunstâncias normais. Provavelmente sim. Mas aquelas não eram circunstâncias normais, de modo que me inclinei para frente, pousando a palma de minha mão fria no rosto quente da garota e tocando sua bochecha levemente com meus lábios.

Esperei que ela se afastasse - não aconteceu. Eu quase me surpreendi com isso - nos últimos dias, parecia que ter contato com a minha pele iria queimá-la. Exceto hoje, depois da aula. Naquela ocasião, eu fugira; estava cheia de tantos jogos e mentiras.

Eu me afastei, deslizando minha mão por sua bochecha. Ela entrelaçou nossos dedos por apenas um instante, e depois eu fui embora. As lágrimas escorreram por meu rosto assim que soube que Becca não podia mais ver.

Tornei a abrir os olhos, voltando para a realidade do banheiro embaçado pela água quente que ainda saía do chuveiro que eu deixara propositalmente ligado, para evitar que ouvissem meus soluços. Não era como se aquele fosse um acontecimento inesperado; eu sempre soubera que iria terminar daquele jeito. O problema é que saber não fazia doer menos...

2 comentários:

Fran Carneiro disse...

A gente nunca sabe fazer doer menos.

Lindo, lindo. Linda história *-*
Adorei!

Ana Paula disse...

A gente nunca sabe fazer doer menos [+1]

Mas diferentemente da garota de cima, não achei nada lindo... D:

Amanha é um dia diferente .-.